quarta-feira, 31 de março de 2010

170 - Poema de desencanto


Feito cão abandonado
Revolvo os destroços:
Preciso retirar a lágrima
Deste teu último vestígio
E ser breve com as palavras

terça-feira, 30 de março de 2010

169 - Cântico

Deixa-me tecer as tardes com tuas alvoradas
Com estas cismas de mulher azáfama
Ouve a contemplação desses olhos febris
Acaricia de indulgência os braços que laçam
A sede de pele que habita o húmido deste ser

segunda-feira, 29 de março de 2010

168 - berceuse


Não me peças urgência
Pois ando a imantar palavras
A fazer malabarismo com o verbo
Quem sabe assim eu possa resistir
A esse vendaval de açoites da tua carne
E imolar todo o corpo em versos de mansidão

domingo, 28 de março de 2010

167 - Quando o sopro é aurora

Quando o sopro é aurora
Vaticino o canto dos canários
Assombro as lesmas no quintal
Percorro desenfreado em lamúrias

Quando o sopro é aurora
Todo canto frio flameja solidão
Eu me enterro de lençóis e fadiga
Para nunca mais me enternecer

sábado, 27 de março de 2010

166 - Poema das descobertas

I
Pássaros voavam debaixo daquele vestido
E eu investido de arapucas tentava em vão
II
As moças com flor de tamarindo
Tem sabor que intumesce lábios
III
Na volta que a curva faz na esquina
Tem a praça, a amendoeira, o banco
E a fugacidade de algumas palavras
IV
Três ou quatro coisas ficaram na lembrança
O que muito se perdeu, não dói por ausência
Mas castiga e atormenta como uma renúncia
V
As pescarias de domingo eram o vício mais alegre
Cheias de viço, visgo e vigor de uma súbita revoada
VI
dona menina fingia-se em algumas intimidades
que gostava de insinuar até me ver extenuado
VII
Coisa mais divertida o espiar pelas gretas
era sempre o refazer do susto revelando-se
VIII
Quando ela foi embora, não apaguei a luz
Fiquei insone com esse fardo de palavras
Que não consigo dar conta pronunciá-las.

sexta-feira, 26 de março de 2010

165 - Uma balada, uma canção

Se eu soubesse um pouco mais
Eu juro que daria de bom grado
Repartiria em pequenos fardos

Essas tormentas não são ao acaso
Vazam em vagas mal habitadas
Não somente nos pequenos versos

Em doses habituais de silêncio e pó
Que a tudo retorna, como mistério
Para mais um crepúsculo nesse cais

Se um soubesse um pouco mais
Eu teria mais idéias e menos certezas
E farejaria teu sexo sem essa gentileza

quinta-feira, 25 de março de 2010

164 - Poema da mais pura inocência II


Trago os sentidos desses pelos
Como veneno de fina safra
Tão bom de se deixar morrer

quarta-feira, 24 de março de 2010

163 - Outro poema de pura inocência


Ainda era ontem quando despertei
Nada havia do que me lembrar
O teu futuro ainda me pertencia
E a ausência era território inútil

terça-feira, 23 de março de 2010

162 - Ode ou madrigal


Tudo é cálido no teu lábio
De estranho sumo da manhã
De doce consumir-se em auroras

segunda-feira, 22 de março de 2010

161 - Poema da mais pura inocência


Diante das evidências
Não me fiz de rogado:
Acenei para teu adeus
Como quem sobe
Ao cadafalso

domingo, 21 de março de 2010

160 - poema de anunciação


Espero as águas que
me cravejam os olhos
nesse sertão desavisado
de juritis, urubus e uroboros.

sábado, 20 de março de 2010

159 - Cavalgada no meio da tarde III

Aguardo-te cansado e febril
Vasculhei o silêncio, a saudade
E todos os espelhos

Contemplei apenas vazios
Nem a tua imagem me devolve
A inocência de tantos ermos

sexta-feira, 19 de março de 2010

158 - Poema sinfônico

Fez ruído na paisagem
E eu não despertei.

Havia um dorso nu
Pejado de flechas silentes

Em um vão perdido
No resto de sofreguidão

quinta-feira, 18 de março de 2010

157 - Epifania para o entardecer


Este poema quer ser um grito
Como aquele quadro de Munch
Em que não há som,
mas há desespero.

quarta-feira, 17 de março de 2010

156 - Cantata em dois sóis

Na dança que ronda teu laço
Quis o permitido encontrar-me
De vento e vestes à paisana
Para sucumbir em sesta e regaço

Deste-me sons, aragens e festas
Curvaste as horas com gentilezas
Foste-me a febre que não cessa
As mãos postadas em signos e nós

terça-feira, 16 de março de 2010

155 - toccata

Fizeste tanta festa
Que o corpo exauriu
Restou o hiato do riso
O doce flamejar
De uma nuvem sobre
A paisagem inerte
De nossa mansidão

segunda-feira, 15 de março de 2010

154 - Cavalgada no meio da tarde II


Eu te imolo em meio às tempestades
E o indômito propagar de eternidades

domingo, 14 de março de 2010

153 - Cavalgada no meio da tarde


Vou-me enfeitiçar de silêncio
Enquanto
Arde o girassol na lapela

sábado, 13 de março de 2010

152 - Poema de puro tédio II

Ainda não nasceram os terríveis
Floresce pacifismo demais
As incorreções foram apagadas
Onde está o território da poesia
A palavra que toma de assalto
A dormência e quietude do verso

Ainda não nasceram os terríveis
Os herdeiros da pena mais bravia:
Baudelaire, Rimbaud, Maiakovski
O atrevimento e a ousadia do verbo
Sobrevive inútil obediência à forma
Quero antes o tumulto e o desespero

E sem soluço atormentar o improvável

sexta-feira, 12 de março de 2010

151 - Poema aquoso

Eu era capaz de tocar
a eternidade desse céu
e
tecer mais uma epifania
para te fazer chover

quinta-feira, 11 de março de 2010

150 - Interlúdio para flauta e gardenia


Então fica assim
Se anoiteces em prece
E repousas teu casulo
Neste peito obtuso

quarta-feira, 10 de março de 2010

149 - Quadra Rimbaud

Sopram-me urgência e ardil
A cândida face pueril
O oblíquo das pernas
O soslaio de afligir-me os lábios
O alvoroço da tua pele suada
Como água a escorrer do Estige

terça-feira, 9 de março de 2010

148 - Poema de todo adeus

Falta-me completar a tua ausência
esquecer os rascunhos, os alfarrábios
carpir na pele a lembrança que arde
com esse sol que teima me fazer feliz

segunda-feira, 8 de março de 2010

147 - Cantata

envolvente o fio a esparramar-se
que eu queria ter três corações
para somente com espadas expiar

esse teu corpo correnteza que desliza
e parece que grita o agudíssimo
e inefável precipitar de vagas realezas

que te dôo símbolos de busca e avareza
pois de tantas mortes que eu me revivo
mais caminhos se fazem porto neste vício

domingo, 7 de março de 2010

146 - Antes do tempo encontrar razão

Antes do tempo encontrar razão
Quero a dança sequiosa
Dos cascalhos e dos barreiros

Pés e mãos afligindo a forma
Modelando os seres etéreos
Desiludindo toda a matéria

Quero nuvens de eternidade
Cobrindo a paz dos esquecidos
Vertigem d’água caindo os olhos

sábado, 6 de março de 2010

145 - Poema em efervescência II

Virgem de sedento poço
Atiço-me em léguas
Para verter esta sede

No retiro que se segue
da carne em doce coito
rendo-me em tréguas

faço no corpo a entrega
minh’alma em alvoroço
ajoelho-me em prece

fito a ternura desses pelos
beijo a ilha dos teus lábios
onde perdura todo o gozo

sexta-feira, 5 de março de 2010

144 - Em toda pele que eu jazia

Havia a palavra e o silêncio
E a palavra silêncio pregada
Em toda pele que eu lambia

Havia a palavra e o silêncio
Em toda pele que eu jazia
Não havia teu perdão

quinta-feira, 4 de março de 2010

143 - poema em efervescência

Por mais invisível que me passe
Essa angústia sutil de querer-te
Contemplo os arredores do teu seio

Tanta robustez e volumes à mostra
Que de mim são forjados à distância
Inútil se quedam fartos meus olhares

quarta-feira, 3 de março de 2010

142 - É no corpo que crio raízes

É no corpo que crio as minhas raízes
nele reinvento destroços e imagens
cultivo o que me chega e se anuncia
como uma ponte, qualquer passagem

É no corpo que crio as minhas raízes
Nele acalmo a dança sonora do tempo
Abarco desídias e pacifico as palavras
Inventario o silêncio que foge ao vento

terça-feira, 2 de março de 2010

141 - romanza

Teci a rede na enseada de impossíveis
Envergando soslaio no sonho que te miro

Fiz oferendas com toda sorte de bagatelas
Instaurei até espanto no despertar infinito

Mas entre claves e bemóis restou-me ocaso
E o raso ruminar de flores entaladas na goela

segunda-feira, 1 de março de 2010

140 - rubro breakfast


O hálito da manhã
Perdura ainda nos lençóis
Enquanto o sol faz saliva
Em nossos olhos