quinta-feira, 30 de setembro de 2010

353 - para um poema só de Maria e Menino Jesus


lembraste os versos do Caeiro,
uma prece de ternura,
uma sinfonia inacabada
que Mahler não escreveu,
uma fissura no calcanhar
de Aquiles,
um arcabouço sem teoria,
um dia, um dia


Clique aqui e veja o poema de Maria

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

352 - poema de alguns caminhos e atalhos

eu não gosto de todos os gostos
só dos sabores que me chegam
por todas as tuas bocas

eu não gosto de todos os gostos
nem dos desgostos cansados
prefiro-te aflita e língua afiada

só assim lambuzados somos
e padecemos de todos pecados
nestes vôos lado alado

terça-feira, 28 de setembro de 2010

351 - Cantata em outro tom para a donzela de olhos raiados

Eu não sei de que caminho cintilante
Teus olhos parecem brotar
Apena fito: rede tênue
Essa atroz impossibilidade de pares

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

350 - Poema para uma impossível Itabira

Não, João não amava Maria
Não havia amor nessa história
Só crença no impossível Raimundo
Que galgaria entre sóis outro mundo

Também não havia a pedra
Não havia poesia nem Carlos Drummond
Apenas o opaco espesso do silencio
Que atormenta as palavras
Que me põe travos na garganta
Enquanto a vida pede passagem

domingo, 26 de setembro de 2010

349 - cantata em único tom para a donzela de olhos raiados

vê se passa teus olhinhos
nas flores que não esquecem
fizeste muda feito passarinho
rabiscando cor lajedo e pedra

adornaste laços nos corações
solitários viajantes de promessa
e na voz sutil dos teus encantos
puseste almas em rito de espera

sábado, 25 de setembro de 2010

348 - Pensamentos rápidos sob o sol inclemente

Pensamentos rápidos sob o sol inclemente
Me vem a mente um filme de Resnais
Ou seria aquele trailer do Estrangeiro
Purificai as minhas mãos de tantos cantos

Camus deu-me força a julgar o pôr-do-sol
Há muito de alucinante em um crepúsculo
Mas seria Resnais ou o trailer Estrangeiro
A dúvida me comove como um carpinteiro

Pensei em criar mancúspias a la Cortázar
Mas são tão difíceis de domesticar
Dizem que seus dentes crescem demasiado
Tarefa inútil aparar caninos por toda a vida

Mas seria tão doce assim uma felina vida
Tenho comigo algo como solstícios
Mas por qual hemisfério me orientar
Continuo ermo e distante: eqüidistante

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

347 - Sob a secreta linguagem da madrugada

Atroz a madrugada consome os passantes
Invade com a brisa pormenores dos amantes
Ateia o fogo das marés pelas avenidas

Mas apazigua os bêbados, consola as meretrizes
Afaga desvalidos que se enfileiram sob marquises
Dá crença aos enfermos de uma nova alvorada

A madrugada excita a caricatura torta dos becos
Faz do canto sem resposta a secreta linguagem
Que escorre pelo bordel interminável do poema

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

346 - se não estás tudo passa solidão

o brilho que é vida não anima
a pedra, a planta, o livro vira tinta
a ordem amorfa, o cristal ordinário

o rio não dimana, o sol não inflama
o círculo imperfeito
o existir é só uma circunstancia

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

345 - poema para a descoberta da morte

tudo morre meu filho,
nada nem ninguém suporta
a dor de uma eternidade

terça-feira, 21 de setembro de 2010

344 - poema para as primeiras águas do sertão

foste a perdição da grande lua
o desencontrar-se na vereda
o bulício da moita rasteira
o arroio espargindo cachoeira

foste ainda o olho e a estrela
a janela, a rede, a varanda
o solitário gesto da ausência
após cumprir faina e obediência

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

343 - que ninguém nos ouça neste antigo poema


seria a ferro e fogo
à custa de muito cansaço
com o destempero das marés
com o insidioso ressoar dos passos
para te fazer trigo e oração, penitencia
e brindar aos lacaios, aos que fazem corte
que ninguém nos ouça neste antigo poema

domingo, 19 de setembro de 2010

342 - dó-brados brandos


nada excita mais o silencio
que este farfalhar de sons
a urdir na anágua ardente

sábado, 18 de setembro de 2010

341 - balada para o inventor da solidão

imagina que todas as coisas estão postas
que as interrogações se foram, agora,
como esta maresia que avassala os talheres

vamos nos fartar neste banquete
vamos nos servir com todas as mesuras
primeiro tu me passas a faca e eu corto
e ficamos assim, eu agonizo e tu sorris
depois será a minha vez

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

340 - improviso galante para a senhora que passa ao largo

o que havia de palavra em ti
o silencio comeu lentamente
agora és somente carne e desejo
a lamber os dias em atônito coito

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

339 - fantasia de menestrel para a donzela de singelos modos

ao encontrar-me depois de tantos desencontros
queria não mais ouvir as palavras
deixaria que só os gestos falassem
e do corpo brotasse o poema, aquele único
feito de néctar, sumos, sopros, poros

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

338 - improviso sobre o poema da algibeira

não raro insisto em abismos
vertigem absoluta de naufrágio

é que me faltam pernas
para luzir em grandes saltos

vivo do chão que acolhe imprevistos
sob um céu que deságua martírios

o barco que balouça é o que me lança
de proa e popa para o caldo estelar

inumeráveis astros que a tudo fitam
abocanham as asas prestes a ruflar

terça-feira, 14 de setembro de 2010

337 - canção imprevista em réstia de luz

tínhamos a inclemência do olhar
nesse jeito de nos doar corpos
silvo de estrada na ponta dos pés
beijos e chapinhas quentes de pão

ouvir canções à beça para aplacar
o calor que vinha de mãos em mãos
e ter sempre no armário geléias
que purificavam o sabor dos poros

e mesmo quando se rompia o elo
afagávamos a distancia com zelo
éramos sempre o inesperado feitio
bonecos de molde, barro imperfeito

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

336 - balada para os misteriosos filhos de Éolo


fosse apenas vento
que fizesse calo na ausência
mas tem o sussurro da brisa
embalado por oboés distantes
esse ruminar de alísios
em todos espelhos do pensamento

domingo, 12 de setembro de 2010

335 - poema para as horas mais céle(b)res do dia

queria ter mais diários abertos,
gavetas desarrumadas,
para que coubessem o inesperado

o crepitar da chama
na pele ou nas sílabas
numa fogueira
de corpos inflamados

sábado, 11 de setembro de 2010

334 - Sigo cego e seco

Ando assim
Como pássaro que perdeu a rota
E não encontra mais o bando

Giro entre sóis, noites e alvoradas
E nada devolve meu existir

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

333 - Fantasia de menestrel apanhador de brisas

Vem fecundar os segundos desta manhã
Com a prenhez das tuas mãos
E afugentar os ventos aziagos
Que me fazem volta aos sentidos

Deixa-me ser teu gentil carpinteiro
A esculpir alvoradas
A delinear com a brasa da saliva
Este território em que me habitas


* O poema acima é filho deste abaixo. O poema de Moacyr Félix me acompanha há muito tempo, quando as paixões violentas corriam nas vastas encostas e havia sempre luzes para recomeçar.

VEM!

Não me deixa sozinho,
catavento à mercê de um vento frio.
Vem
encher com teu corpo de moça
o vazio, o imenso vazio...
Vem
apagar toda esta dança de luzes
luzes loucas, loucamente piscando
na cidade escura dos meus pensamentos!
Vem, depressa, vem
abrigar o meu impulso de fim
como um rei entre as tuas coxas
ou trazer nos lábios o esquecimento
das coisas que eu desconheço
mas são brasas
aprisionadas dentro do meu cérebro.
Vem
empurrar com a carícia de tuas mãos
esta noite estranha que cresce, que cresce...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

332 - Poema de pura aspereza

Prendo-me a ourivesaria da palavra
labor de atroz operário
que segue a sina sem louvor

usina de sons e estribilhos
querem-me ferir os ouvidos

atento ao sino casto
cumpro carpir cognatos

e sendo inteiro o meu fervor
deito rédeas e esporas
para que não me finja o vocábulo

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

331 - poema de súbito desterro para o despertar

a insolvência da brisa anuncia
nós que ardem
em desencontro de ais

são tão trôpegos nossos corpos
calcinados nessa teia de suor

terça-feira, 7 de setembro de 2010

330 - Concerto de súbito garbo e louvor

Há o desafio da urgência que me impele para o teu corpo
Como se fosse o estuário de todos os sabores
E meus lábios, mãos, sexo se desencontrassem de prazer
Perdessem-se na vertigem inusitada desse mergulho
Cada vez mais agudo, feito lamina que sangra os sentidos
Para que o gozo - enraizado como pétala na penumbra -
Faça cristais dos nossos poros e transpirem em luz
A correnteza dos nossos dias eternizados
Como um silvo, uma fagulha, uma pequena pedra no jardim

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

329 - vice-versa


do vício
do verso
viceja
o verbo

domingo, 5 de setembro de 2010

328 - Desconcerto para menino e raio de sol

No passeio que a rua fazia voltas
Soprava o instante da tua aparição
Ainda guardo a mirada, o relance
Misturados ao susto do teu improviso

sábado, 4 de setembro de 2010

327 - dó-brados brandos II

para brindar eu menino
sonho ser melodias
invariavelmente

como o verso anoitece
na semente da romã
invariavelmente

como musgo à revelia
na insônia dos meus dias

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

326 - enquanto queima o silencio na lareira

eu preferia caminhar sobre
a fugacidade de algumas palavras

e apenas brindar a nossa nua pele
os nossos olhos de lesmas
que se demoram a encontrar

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

325 - improviso para crepúsculo à beira-mar

enterneceram-se as pegadas na areia
na febre do ocaso que avassala os dias
já não tenho roupas para vestir a solidão

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

324 - Suíte para o dorso da manhã


Verga-me em vestes a língua
No chão todo feito de esporas
Não resisto: cavalga-me a palavra