terça-feira, 31 de maio de 2011

600 - tremem as vestes da rainha sob a ventania

a rota do horizonte inaugura o por do sol
o crepúsculo se banha no olho do pássaro
a réstia que ilumina o rosto a torna divinal
tremem as vestes da rainha sob a ventania
mas o perfil imóvel delineia minhas órbitas

segunda-feira, 30 de maio de 2011

599 - suíte suicida para almíscar, pele e escarpas

adoro a superfície dos teus pezinhos escandinavos
eles me pisam numa orgia tão delicada
eles me atenuam dos graves scarpins

domingo, 29 de maio de 2011

598 - Outra balada de pedra, rio e correnteza

Fui teu gentil até perceber as incoerências
Que me traziam agravo nos passos
E as reticências na crina do olhar
Até perceber as ondulações na planície
E a insolúvel intempérie dos gestos
Declino pois de tuas mesuras e temperos
Dos cheiros que ensandeciam a pele
Cultivo só os cataclismos das rugas
Lâmina que me rasga espelho e face

sábado, 28 de maio de 2011

597 - para uma geografia de ânsia canibal

valéry criou o leão de cordeiros assimilados
eu de minha sorte pastoreio cabras
nesse quintal desmesurado de incoerências
e a minha fome ancestral devora arbustos
sou pleno de vegetação rasteira

sexta-feira, 27 de maio de 2011

596 - suíte para uma possível confluência de rios

Quis a ventura do meu olhar te encontrar sossegada
Feito moça com brinco de pérola a espantar o vazio
Quis a ventura recolher em ramos os teus encantos
Para adornar a fronte desassossegada deste pária
Quis a ventura estancar com um assovio toda a dor
Num relance descortinar a rota final para o extravio


* O Ribeiro Pedreira ofertou-me um poema aqui

quinta-feira, 26 de maio de 2011

595 - canção de fortuna para homens e caranguejos

desliza pelos baixios a insígnia das marés
sob a vista escorregadia dos crustáceos
cujos olhos apontam no céu em comoção
as flores tardias que medram no mangue

quarta-feira, 25 de maio de 2011

594 - balada de esquecimento aos longos cursos d’água

há um desembaraço na calmaria desse dia
que já se agitou em pretérita tempestade
hoje a polidez é fonte de tua anunciação
as águas de augúrio perderam-se no mar
são astros lívidos no mais longo dos ocasos

terça-feira, 24 de maio de 2011

593 - Suíte insolúvel sob a luz do candeeiro

Venho limando as arestas do impossível
Dias e noites em ansia e contrição
Rezo pela causa dos ensandecidos
Os que burlam a lógica da florescência
E querem antes provar o agraço

Venho limando as arestas do impossível
Dias e noites em cólera e borrasca
Rezo pela causa dos ensandecidos
Pelo desenfreado rumor das veias
Sobretudo o resíduo inútil de fervor

segunda-feira, 23 de maio de 2011

592 - poema da mais fina casta dos jasmins


sob meus pés as relvas fazem embaraço
crescem-me heras na fronte envelhecida
meu olho se alumbra na teia de ramagem
como ciclope divago na areia da vertigem
tudo em mim passeia com sede vegetal
sangro planta e flor em artérias acidentais

domingo, 22 de maio de 2011

591 - cantábile para alfabetos em rotação

tínhamos o convívio tosco dos enamorados
cuja variante de olhares não se despregam
e cuja cútis reflete o rubor das descobertas
   tínhamos o incêndio da página vazia
   na ânsia desordenada das caligrafias

sábado, 21 de maio de 2011

590 - para uma canção sobre a essência táctil

sobre a tua pele de sensíveis arrepios
corre a brisa do meu hálito
corre a vertigem de dedos e anseios
plasma o clímax de recentes oferendas

sobre a tua pele se alastram os começos
as estradas que dão para o sem fim
o precipício de palavras que se agitam
e condensam essa nuvem em ebulição

sexta-feira, 20 de maio de 2011

589 - um outro poema já tão velho quanto a canção

desde que me desentendo com as palavras
uma voz soprano me habita os ouvidos
perambula em minha face descortinada
ansiando por horizontes e metáforas
enquanto assovio Joe Hill

quinta-feira, 19 de maio de 2011

588 - girassóis insinuam a rota do amanhã (duas versões)

I
para os olhos que dobram cimos e
sorriem acorrentados em tanto zelo
inútil soslaio desta mão que velo
imenso engano desse novelo

II
na volta do caminho
tem o mistério do cansaço
de mãos que colhiam seixos
e esperavam o fluir dos peixes
na anágua da sereia

quarta-feira, 18 de maio de 2011

587 - Poema para os eus que invadem minhas narinas

Deito em teu mundo perfeito
Nele ouso fazer acrobacias
Não no meu
É iminente o risco de cair
Mesmo deitado assim
Com mãos flutuando ao peito

No teu modo de mundo perfeito
Voam trapézios nossos ossos
Entre o escafoide e o metacarpo
A lã corrói o aço
Não no meu
Qualquer esboço é fracasso

Preso em teu mundo perfeito
Apenso ao alto desfiladeiro
Há calma e paz
Mesmo cruficado de ais
Não no meu
Cujo sossego é letal

terça-feira, 17 de maio de 2011

586 - ária profana pra ritmos intangíveis

Ela me esperava pássaro de laço inteiro
Deitava festa, empoleirava
Sorvia o canto de asas emplumadas

Eu flutuava num rastro de assovio
Com os pés alados em obediência
Breve seríamos redondilha maior

segunda-feira, 16 de maio de 2011

585 - suíte para violão tenor e amarelo

do que vejo pelo chão
são sombras rotas
imensidão

tocou-me ás em xeque
rainha de bolero

do que plaina em mão
pleno exército
de indagação

criva-me pelo em crina
cavalo de mistérios

do que finda no infindo
desafia a sina
curvam-me as retinas

domingo, 15 de maio de 2011

584 - poema para todos os partos de minha costela

as mulheres que amei sempre me foram desconhecidas,
bebiam a minha sede e se fartavam em minha fome,
depois se iam com meus passos tontos

sábado, 14 de maio de 2011

583 - canto para território de consoantes e vogais

cada palavra inventa sua geografia
como um corpo inventa a sua pele
mesmo sem vento que o impele
nem susto na caligrafia

cada palavra inventa sua geografia
como o pássaro inventa as asas
mesmo sem o canto de alforria
nem espanto na agonia

sexta-feira, 13 de maio de 2011

582 - Poema do mais repetido clamor da sexta-feira

Minhas temporas doem às sextas-feiras
Inflamam-se e desatinam
Minhas temporas se lembram do teu olhar
Aquele que me empregavas
Quando chegavas submissa ao desejo
E tua respiração arquejava no ventre
Minhas temporas doem às sextas-feiras

Creio que eu era feliz com os sobressaltos
Com as peripécias de tuas idas e vindas
Mas estavas para mim às sextas-feiras
E os músculos reagiam com alegria

Minhas temporas doem às sextas-feiras
Repetidamente, intermitentemente
Mesmo que outros frutos se ofereçam
Num repasto macio de carnes latejantes
Minhas temporas queimam às sextas-feiras

quinta-feira, 12 de maio de 2011

581 - Canção de fervor a aurora crucial

Outrora a estrada se perdia no infinito
E era tão bonito o horizonte da manhã
Com o hálito de terra molhada
Os passos salpicados de amanhecimentos

quarta-feira, 11 de maio de 2011

580 - Sonata para dois pianos e flautim

Deixa-me assim, menino tolo com teus encantos
Marinheiro tonto em meio às tormentas
Deixa-me assim, regozijo de puro tremor
Mãos que bordam o desalinho da pele
Que nada mais te peço brilho de turmalina
Deixa-me assim, recluso em tuas digitais

terça-feira, 10 de maio de 2011

579 - metapoema para o silencio que arde na nuvem II

as nuvens são por excelência inflamadas
nós é que não percebemos
o fogo que as consome

nós é que não percebemos
a dor etérea em suspensão

segunda-feira, 9 de maio de 2011

578 - metapoema para o silencio que arde na nuvem

sinto-me tomado de orvalho
quando vislumbro
o que os olhos já não veem
e nesse naufrágio de nuvem
sem porto nem cais
vagam-me em reticencias
a vidraça e a paisagem
a fina íris de melancolia
para qual se debruçam
meus pés ensimesmados

domingo, 8 de maio de 2011

577 - Ode para caminho de pássaro entre crisântemos

Há quem vislumbre sobre o amor imensa pele
Lugar de assovio para águas
Mar de intensa sede

Eu o vejo espraiado em desatinos
Curva que não se pode alcançar
Horizonte de pares em desalinho

Pois do amor sabemos fogo e intempérie
Fulgor que se assanha em labaredas
Dor que instila veneno e alimento

Há quem vislumbre sobre o amor torta inclinação
Querubins sorrateiros em festa e seresta
Inculcando as faces de interjeição

Pois do amor eu nada quero saber
Contento-me em provar a foice aguda
Sentir o arrepio do corpo arquejante

sábado, 7 de maio de 2011

576 - Balada sobre uns nadas que avançam parados

Não consigo fazer da poesia lugar para acalanto
Antes tormento, aflição, desassossego e pranto
Nem mesmo a ti, etérea pastora dos meus versos
Consigo dar forma de nuvem sem vir tempestade
Desabam incrédulos os desejos sobre os ombros
Delira a mão de correnteza, rio que a tudo arrasta
E se do assombro restar quem sabe sal e ternura
Cede a minha sina: põe meu caos em tuas retinas

sexta-feira, 6 de maio de 2011

575 - enquanto o poeta prepara o repouso da alma

o punhal rasga a sílaba do poema
a tormenta fere o pálido na página
o ímpeto assalta marés assustadas
o frio entorpece os dedos fugidios
o cálido sopro se anuncia em retorno
a calma clama a invenção da chama
no infinito as palavras não se bastam

quinta-feira, 5 de maio de 2011

574 - canção para estilha de pedra no regato

também já fui diverso
avesso a união
universo de solidão

também já fui o verso
inverso da oração
apenso a tua estrofe

também já fui imerso
verbo estranhado
absorto na imensidão

quarta-feira, 4 de maio de 2011

573 - balada de voo longo dentro da noite

Nunca imaginei o encontro na esquina
Depois da canseira de pernas nas pedras
Daquelas ruas íngremes cheias de horizonte
Para mim a lua de São Jorge ainda flutuava
Líquida entre os passantes mais apressados
Pois havia a fumaça que entorpecia a sede

Eras o seu texto a tocar-me entre os dedos
Enquanto esperava o abrir-se da cortina
E finalmente a tua aparição
Como na pose do disco antigo da Janis
Talvez, talvez ainda corressem outros rios
Em meio aos ritos que apressaria a mostrar

Para mim a lua de São Jorge era de mais luta
De combates sangrentos, espadas e grilhões
Tu a fizeste mais próxima das fantasias
De princesa inacabada na frase do poema
Em teu soslaio de quem traga o pensamento
E se oferece em encontro fortuito na esquina

terça-feira, 3 de maio de 2011

572 - canção de espera para a natureza das pedras

há de provir o tempo para que eu plante e germine
as auroras que buscam despertar os prodígios
enquanto o rio corre em mansidão pelos vales
e as pedras comedidas banham-se em letargia
há de provir o tempo para que eu plante e germine
o visgo precioso da centelha que aflige eletrizada

segunda-feira, 2 de maio de 2011

571 - balada de incenso e sândalo para senhora do paraíso


teu último beijo me arde
nas retinas incendiadas
tão medonho o demônio
de tuas ternuras bestiais

domingo, 1 de maio de 2011

570 - pequena écloga para jogral de Rimbaud

as cores pariam intumescências
nos olhos crispados do entardecer
o menino ventava uma correria
na memória de uma infância antiga
os pássaros já se empoleiravam
esperando a sinfonia que desabava
junto com a noite de seus espíritos

o que jazia no caminho era a ponte
atravessada de reminiscências
a insolência de mãos e desatinos
um fulgor que íntimo se imantava
o cortejo de mulheres em benção
e os sábios desejos que floresciam
salpicando de terra todo o orvalho